Por: Enrique Lanza (escritor cubano)
Narrativa publicada no número 1 da Revista Critério
Director: João Palma Ferreira
Director Adjunto: Alexandre O?Niell
(Novembro de 1975)
Em certas ocasiões, especialmente feriadas, preparada pela mão incrível de meu pai, aparece na nossa mesa uma tortilha de bananas, de um sabor e de um aspecto entre o onírico e o pornográfico... A banana, como é bem sabido, apresenta, no seu estado natural, um aspecto nitidamente falusco; mas quando se torna friável, num estado avançado de maturação, e se mistura com ovo batido, o seu aspecto muda de uma maneira crisálica, convertendo-se numa espécie de incrível filete púbico. Poucas vezes - creio - se viu tamanha transformação na História, salvo no caso, talvez, da estranha aventura de Orlando, e na história - bastante desprezível, por certo - de determinados transformistas de feira barata.
Seja como for, a execução desta tortilha por parte de meu pai é sempre um labor de natureza particularmente mística. As bananas são fritas (ou frigidas, que neste momento pouco importam tais signos de depravação), com chama muito baixa, até se atingir, quase, o ponto sublime da calcinação; acto contínuo, depositam-se quatro ovos batidos na frigideira... mas façamos uma paragem: é impossível continuar desta maneira sem pormenorizar, ainda mais minuciosamente, a fritura, ou frigidura, dos pedaços de bananas maduras: estes devem frigir-se não só muito lentamente, mas também com uma espécie de balanceio e com um sibilar indescritível, de inspiração marcadamente gregoriana, por parte do cozinheiro. Mesmo assim, devem colocar-se, junto da frigideira, outros ingredientes, tais como açúcar, louro, cravinho e demais especiarias, além de pimenta, de que o cozinheiro, num qualquer momento imprevisto, podia necessitar em microscópicas quantidades. Tais condimentos devem colocar-se em tarros de porcelana ou, a não ser assim, em tigelas de barro cozido, juntamente com rodelas de beterraba, limão e tangerina, bem como alguns rabanetes e, uma que outra vez, uma cenoura envolta em folhas de alface, além de um pedaço de azedas. Todos estes ingredientes, destinados exclusivamente ao gozo estético de meu pai, exercem não pouca influência sobre o processo de frigir as bananas; se algum deles faltasse, seria impossível predizer o resultado da operação, que chega ao seu momento apiçacúmico quando o meu pai, mergulhado praticamente em transe, leva um à boca e o prova. Disto depende, em grande parte, o êxito da tortilha, que ainda está, por assim dizer, em estado fetal.
Preparadas as bananas, seleccionados os bocados mais delicados, procede-se à imersão dos ovos batidos na frigideira. Estes ovos não podem ser ovos normais e correntes, como esses que é possível passar por água; pelo contrário, enquanto que naqueles é recomendável uma palidez quase botticéllica, os ovos para a tortilha de bananas devem ter, nas suas gemas, um pouco de Van Gogh e um pouco de Breughel, e nas suas claras, um branco puramente construtivista, ascético, quase - e é delicioso este quase - virginal. O partir do ovo é também todo um procedimento cabálico, com o qual iriam às mil maravilhas alguns dramas litúrgicos cantados por monges beneditinos (nota à margem: apesar de ter recomendado uma infinidade de vezes este acompanhamento a meu pai, ele nega-se a utilizá-lo, devido a problemas puramente pessoais e sacrificando nas aras de um racionalismo extremo quando é chegada a hora da confecção dos pratos, já que a não ser assim - explica - passaríamos madrugadas inteiras partindo ovos, embelezados com cânticos inquisitoriais). O ovo, na sua ruptura, deve formar dois semielipsóides perfeitos, o que parcialmente se consegue com a ajuda de um escalpelo do aço especialmente fino usado correntemente para imprecisas investigações sobre o globo ocular por alguns médicos croatas, e que foi enviado expressamente de Belgrado por um doutor Armagedónic, excelente amigo cá de casa entusiástico admirador da ciência das tortilhas de banana «à la havanaise», que assim baptizadas foram recentemente, por um advogado australiano, as tortilhas que meu pai ocasionalmente prepara para um grupo de iniciados. Quando isto sucede, contam-se inúmeras complicações nas companhias de aviação, tais como intrigas, raptos, violações, chantagens, por causa do interesse dos nossos amigos em virem comer a tortilha, e acontece que, de repente, recebemos um cabograma de Singapura no qual um amigo nos informa que chegará, talvez, com seis horas de atraso, em voo fretado especialmente, a partir de Acra, com o que se complica naturalmente a ordem dos convidados e, o que é mais, se dificulta extraordinariamente a determinação da hora exacta em que se começará a servir, no meio de fanfarras e de faixas de cores, a tortilha.
Mas voltemos aos ovos. Eu disse anteriormente que, no momento da ruptura, o elipsóide deve formar dois semielipsóides perfeitos, mas não tinha falado ainda (confio em que o leitor desculpará este modesto narrador) sobre a coloração que é forçoso tenha a casca do ovo: se o seu interior deve apresentar uma coloração paradisíaca, a casca, lamentavelmente, peca pela sua crueza. Após muitos anos de buscas e investigações, meu pai chegou à triste conclusão de que a casca, como uma boa parte da Natureza, raramente é bela quando o interior cumpre os requisitos indispensáveis para a execução do manjar sublime.
De vez em quando, no entanto, acontece que a casca, que geralmente vem com incríveis sujidades (manchas castanhas, restos de bâton), aparece completamente branca, quase cristalina, e então entra-se nos preparativos da Grande Tortilha de Bananas «A La Havanaise», que geralmente é saboreada por um grupo ainda mais escolhido de provadores; quando tal sucede, a lista de convidados é dividida em quadrantes terrestres, para evitar desnecessários derramamentos de sangue.
Dito isto, passemos à cocção da tortilha propriamente dita, não sem, primeiro, anotar um pormenor de absoluto requinte por parte de meu pai: minutos antes de verter os ovos batidos, meu pai escolhe, de um prato de cristal transparente, as bananas que não foram seleccionadas para a tortilha, e entrega uma banana a cada um dos comensais, para saber a sua opinião. O sabor requintado das bananas preteridas exalta, naturalmente, o entusiasmo da assistência, que, arroubada, se prepara para contemplar o espectáculo raro, quase único, que representa ver meu pai no acto de depositar, numa frigideira niquelada, com incrustações de nácar no cabo, o conteúdo de um jarro de porcelana dourada com motivos de inspiração nitidamente bizantina que contém os ovos previamente batidos com um garfo de ouro recamado de pedras falsas que fez parte - hoje, finalmente, pode dizer-se - do enxoval de Emoke, uma das últimas esposas de Átila. No momento em que o conteúdo do jarro cai na frigideira, é costume produzirem-se exclamações de assombro entre os convidados (uma vez, a embaixadora das Galápagos caiu em estado de coma durante mais de dez dias, ante a impressão do espectáculo), já que nesse momento, e não em outro, se pode ouvir, suavemente, o começo da «Suite número dois, em «Si» menor», de Bach, que transporta os convidados a uma quase levitação corporal. Devo esclarecer que uma circunstância muito importante nesta fase da operação é a de que a gordura usada para frigir a tortilha tem de ser a mesma que se usou para frigir as bananas. Se tal não suceder, todo o encanto se perderá definitivamente e a tortilha jamais adquirirá o «éclat» imprescindível à tortilha de bananas «á la havanaise», da qual a minha família e eu vivemos plena e justificadamente orgulhosos.
Durante o processo de cocção da tortilha, meu pai manda que o deixem sozinho, mantendo a porta da sala onde se frege a tortilha hermeticamente fechada. Filtram-se apenas, por causa duns gonzos que nunca foram arranjados, algumas árias de Scarlatti e um vago olor a asas de mariposa queimadas, que, segundo o nosso amigo doutor Armagedónic, são o que imprime esse gosto peculiar à tortilha, ao serem aspergidas, dissolvidas em óleo de rosas, sobre a frigideira. Este tema continua a ser objecto de controvérsia e ouviram-se, certa noite de Junho, os alaridos de um libanês no momento em que caía do nosso terraço emaranhado ainda numa discussão a esse respeito com uma judia que se vangloriava de ser a descendente directa das que, faz tempo, cozeram o pão que ofertava nas suas bacanais um patrício nazareno. Seja como for, o mistério da cocção da tortilha permanece indecifrado e disso posso vangloriar-me, pois quando chegar o momento oportuno aprendê-lo-ei de meu pai.
Decorridos uns minutos (9,34660785342, segundo o nossa bom amigo Wohlin, o relojoeiro suíço), no momento em que a conversa está a pontos de elanguescer, um trinar de canários e uma chuva de pétalas sobre o salão anunciam que a tortilha foi concluída. No instante em que o último canário emite a sua última nota, no preciso momento em que a última pétala acaba de cair no soalho, ouve-se um acorde de trombetas (um arranjo sobre um tema de Vivaldi) e abre-se, majestosamente, misteriosamente, sem rangidos, a porta de dois batentes da sala onde se prepara a tortilha. Os comensais penetram na sala no meio de grande vozear, empurrando-se uns aos outros, embora sejam logo misticamente detidos pelo som de um gongo persa que os paralisa. Meu pai, então, volta-se, e lançando aos comensais o seu mais alquímico sorriso, diz, isto é, sussurra, extenuado: «A tortilha está pronta.» Então, de todas as portas da sala saem mordomos, lacaios, odaliscas e, para dar corpo e homenagem ao toque nacional, um tocador de bongó, saudando, por entre aleluias e hurras, o advento da tortilha. Com os acordes do «Messias», saem todos, em tropel, pela porta do salão, e dispõem-se em fila, lutando pelos melhores lugares para fruir do incrível aroma e da beleza sem igual da tortilha de bananas.
Quando a criadagem já se retirou, meu pai manda que se fechem as portas e, com uma expressão totalmente metafísica, depois de enxugar o suor da fronte com um lenço de seda indiana, proporciona aos seus comensais a contemplação do fruto do seu esforço: a tortilha de bananas perfeita, o «non ptus ultra» das debilidades humanas, oferecida à enlevada degustação dos seus convidados e dele próprio. Exclamações tais como «perfeito», «sublime», « genial», «maravilhoso», proferidas em todas as línguas, com todos os sotaques, já não impressionam a meu pai. A mim ainda, confesso, e marejam-se-me os olhos de lágrimas à simples recordação do celestial espectáculo que oferece a tortilha de bananas. Mas deixem que lhes descreva a sua aparência, quando ainda dentro da frigideira: os senhores talvez julguem, candidamente, que a tortilha é branca, límpida, cristalina; penaliza-me ter de os desiludir: a tortilha, ao sair, tem todas as cores, do amarelo-limão ao castanho-caramelizado, passando (em algumas zonas em que meu pai faz alarde do seu génio) ao quase negro. Os pedaços de bananas, incomparavelmente vermelhos, saem por vezes dessa massa dourada, conferindo à tortilha o aspecto da mais valiosa jóia ateniense, e recordando vagamente as esculturas da Grécia arcaica; a tortilha compendia todas as curvas, os salientes e os entrantes que, por certo, já estudou a Geometria dita analítica. É uma jóia decorada por pintores flamengos, um mosaico bizantino, enfim, o elixir «vitae» sob a aparência da tortilha de bananas, a tortitha de bananas « à la havanaise», feita de pedaços do Yang, do Kamassutra: a perfeição afiançada na vida terreal.
Cessadas as exclamações, meu pai volta-a, fazendo admirar os seus flancos rosados e, finalmente, o seu reverso, que repete, exactamente, as tonalidades do anverso (depois desta demonstração, é, frequentemente, necessário que se vá buscar sais aromáticos para alguma dama ou algum diplomata nórdico, sempre demasiado sensíveis a estas emoções místicas, puramente equatoriais).
Acto contínuo, meu pai passa a tortifha para um prato amarelo-limão - a eleição da cor deste prato levou anos de intenso estudo e é de vital importância -, onde a tortilha de bananas é cortada em pedaços com uma faca de obsidiana. Nesta operação vê-se, pela primeira vez, o interior da tortilha, fresco como um manancial e desprendendo os vapores de um géiser, onde o vermelho das bananas se converte em ouro velho (sem dúvida por causa da oxidação). Isto ocasiona novas exclamações e um ou outro grito histérico por parte de uma qualquer marechala e todos os convidados, com os olhos fora das órbitas, sonham com o pedaço que lhes caberá, acariciam-no mentalmente, devoram-no com o pensamento.
O momento de ir buscar os pratos é muito importante e meu pai, geralmente, pede a cooperação de um convidado para tirar os pratos turquesa dos armários de sândalo vermelho. Depois de escolher os pratos, reserva um para cada convidado, e vai depositando nele o seu pedaço de tortilha, enviando-o por um criado ao grande salão de jantar, que foi previamente decorado, tendo em vista a ocasião, com pesados damascos, filigranas antigas, tapetes persas, cortinas de seda e, sobre a mesa - que emoção contar isto! Senhor, dá-me forças para continuar! -, sobre a mesa, um maravilhoso serviço de Baccarat, umas taças tão fantásticas que nem sequer precisam de ser tocadas para musicalmente vibrarem, umas taças que, sozinhas, animam a festa com o seu angélico retinir. Além das taças, o nosso serviço de prata com as iniciais da família, os nossos guardanapos bordados com o nosso cunho heráldico, o centro de mesa de Sèvres, repleto de rosas e de lírios. A um canto do grande salão, meio escondido por uma cortina de renda, um quarteto de cordas toca Mozart, animando com encantos pastoris o recanto provençal com incrustações de marfim e de ébano onde se servem os repastos.
Quando o último prato é servido, meu pai, com um gesto cheio de graciosidade, convida os presentes a iniciarem o ágape, desejando-lhes a melhor das degustações (é de notar a sublime cortesia que faz com que meu pai não deixe ninguém acompanhar o seu próprio prato antes obrigando os convidados a permanecerem juntos, para evitar injustas acusações). Seguidos pelas vozes dos criados, os convidados, por fim, penetram no nosso santuário e ocupam os seus lugares (como foi utilizado um nónio no momento de cortar a tortilha, não pode haver querelas acerca do tamanho dos pedaços que cabem a cada um, o que é a demonstração da inegável cortesia de meu pai). E então começa, verdadeiramente, o repasto.
Quando o garfo penetra pela primeira vez na massa, descobre-se, em meio dum murmurar undoso, que a tortilha, apesar do seu aspecto levemente tostado, se mantém muito tenra no seu interior, como se durante anos, tivera sido conservada no fígado de uma ave fénix. Sobrenadando nessa maravilhosa gelatina, deslizam suavemente os pedacinhos de banana, como que empurrados por uma brisa sobrenatural. A massa da tortilha de bananas «à la havanaise» mostra, um pouco por toda a parte, pontos negros, que a fazem assemelhar-se vagamente ao púbis recém-depilado de uma estrela de cinema.
O acto de introduzir os pedaços de banana na boca acaba, pouco a pouco, por se aprender e dominar totalmente, e é das raras coisas de que, na meninice, não se pode ter ciência, pois só os homens, após haverem saboreado profundamente certas artes hindus, a dominam com segurança (talvez seja esta a razão que leva os Jesuítas a terem na mais alta estima a tortilha de bananas). A arte de comer a tortilha de bananas, em especial a tortilha de bananas «à la havanaise», é uma arte fundamentalmente viril. Quem sabe se não será por isso que as mulheres, de modo aparentemente inexplicável, apesar de se mostrarem capazes de apreciar o seu onírico sabor, engolem quase de um trago os pedaços que cortam em porções diminutas, ao passo que nós, os homens, os degustamos pouco a pouco, indecisos no engolir, no rematar uma operação tão delicada, tão subtil como o coito japonês ao som da música de Ravi Shankar! Em termos gerais, os uranistas e as afeiçoadas a Lesbos preferem a tortilha de batatas que confecciona um tal Jean, no Luxemburgo, diz-se que com coros gregos e modas Unissex. Mas deixando a um lado tais entes e voltando às delícias da tortilha de bananas «à la havanaise», permitam-me que lhes diga que o sabor e o aroma incríveis da banana se misturam com a massa de ovos ? massa quase sempre amorfa e insípida ? até alcançarem um ponto de perfeição tal que o pobre do mortal se julga em trânsito para o Nirvana. Esta fusão atinge alturas tão sublimes que chega a ser necessário lavar a boca com um vinho espumoso, bebendo-o apressadamente para anular o efeito cataléptico do seu índescritível «bouquet». Alguns apreciadores da tortilha de bananas «à la havanaise» que confecciona o meu excelso pai, afirmam que o deixar tempo de mais o sabor da tortilha na boca leva inexoravelmente aos sombrios caminhos da demência.
Terminado o repasto - o que acontece, frequentemente, cinco ou seis horas depois de ter sido iniciado, por causa da manifesta incapacidade masculina de ingerir rapidamente o celestial alimento, tempo que aproveitam as esposas dos nossos convidados para se aspergirem com águas-de-colónia, óleos e ceras revivificadoras da pele e da vitalidade (sabem que depois da tortilha de bananas o apetite carnal dos seus maridos será estrepitoso) -, os convidados, não sem, antes, testemunharem a meu pai todas as provas possíveis de amizade e de gratidão, e, até, o obsequiarem com presentes e peças de arte de incalculável valor, partem, rápido, para o aeroporto, e minutos volvidos vêem-se, no céu, as luzes dos seus aviões fretados aproando a Nairobi e Madrid, Telavive e Jacarta, Bucareste e Lima.
Meu pai e eu, do terraço, endereçamos-lhes acenos de feliz viagem com panos coloridos e, nos dias especialíssimos em que se consegue a Grande Tortilha de Bananas « À La Havanaise» com fogos-de-artifício das tonalidades do arco-íris, e assim, mesmo quando, já é noite, podemos ver os seus lencinhos bordados agitarem-se, por detrás das vigias, em adeuses para nós. Logo nos retiramos, e às vezes meu pai interroga-se sobre a minha capacidade de guardar o segredo da tortilha de bananas «à la havanaise». Em noites como essas, eu era até capaz de me envenenar.