quinta-feira, maio 23, 2013

DA ‘INFELICIDADE’ RELACIONAL DOS PORTUGUESES


Isto é mesmo tramado!

Na maioria das vezes é a cultura portuguesa, o modo de estar e de viver, a filosofia de vida do português que provoca a dificuldade relacional e a infelicidade entre as pessoas ― sobretudo entre ‘casais’ (de namorados ou o que o valha). E isso por um motivo fundamental, entre outros menos importantes: porque queremos tudo investigar, tudo escalpelizar, tudo desnudar, tudo conhecer de documento passado e autenticado e acompanhado de certificado de registo ‘criminal’ (muitas vezes interessando apenas o ‘registo criminal amoroso’).

É óbvio! é mais que óbvio que à partida uma relação assim submetida a regras de vigilância e inteligência tão apertadas e invasivas, está condenada ao fracasso.

― Não devíamos sequer importar com o Bilhete de Identidade do outro, quanto mais com todas as minudências exigidas no cardápio cultural português de relacionamento entre ‘parelhas’ (salvo seja ― isto é o Inglês a deformar o Português).

Sabe-se de há mais de um milénio que a sedução, coisa importantíssima para o bem-estar e para o prolongar da chama da paixão e dos requebros gozosos da alma, é o cimento fundamental de uma relação a dois.

Ora a sedução não é mais do que o resultado emocional da existência da curiosidade em desvendar o íntimo (mesmo o secreto) do outro. Se e uma vez desvendados, a sedução desaparece ― como é lógico! ― e deixa de ter razão de existir porque já não há mais segredos, mais pormenores do outro a desvendar; não há mais alimento para a sedução. É nessa altura que normalmente começam os problemas de relacionamento entre ‘parelhas’ e o esboroar da relação a dois.

Mas vai lá um indivíduo convencer os portugueses a agirem de modo diferente!...

Agir de modo diferente é algo que não se aprende com explicador: ou está embebido na cultura de um povo... ou então... chapéu!

É sabido e está mais que provado que a barreira linguística entre membros de um ‘casal’, por dificultar a pesquisa e impedir a devassa do íntimo do outro, faz com que o relacionamento se prolongue equilibradamente por períodos de tempo muitíssimo mais longos do que estão habituados os portugueses: mesmo quando um dos membros do ‘casal’ é português;


Donde se conclui que...

COMO A AVE FÉNIX

Repego hoje este blogue para tentar mais uma aventura pessoal na blogosfera. Uma aventura diferente das anteriores posto que a política e as polémicas serão afastadas  de todo  deste blogue a que pretendo dar um carácter meramente intimista e diarista (tanto quanto for possível).

Obrigado por me acompanhar.

terça-feira, outubro 14, 2008

sábado, maio 24, 2008

domingo, fevereiro 17, 2008

A EXECUÇÃO

Eis uma passagem fabulosa do Ulisses de James Joyce em que o autor relata a execução de um condenado à morte. O parágrafo final, a fala do tenente-coronel Tomkin-Maxwell ffrenchmullan Tomlison, tem a marca inconfundível e inimitável de Joyce ― o que mais terá contribuído para a proibição do livro, na época, inclusive nos Estados Unidos.

― Pura pornografia ― dizia-se então.



«Calmamente, desafectadamente, Rumbold subiu os degraus do cadafalso em impecável traje matinal e levando sua flor favorita, o Gladiolus Cruentus. Ele anunciou sua presença por aquela gentil tosse que tantos têm tentado (mal-sucedidamente) imitar — curta, meticulosa mas ademais tão característica do homem. A chegada do mundifamoso carrasco foi saudada por um bramar de aclamações da enorme concorrência, as senhoras vice-reais ondulando seus lenços na excitação enquanto os ainda mais excitáveis delegados estrangeiros vivavam vociferamente numa miscelânea de gritos, hoch, banzai, eljen, zivio, chinchin, polla kronia, hiphip, vive, Allah, em meio dos quais os tintineantes evviva do delegado da terra do canto (em duplo fá agudo que lembrava aquelas penetrantes notas adoráveis com que o eunuco Catalani enfeitiçara nossas tetravós) eram facilmente distinguíveis. Eram exactamente as dezassete horas. O sinal da prece foi então prontamente dado por megafone e num instante todas as cabeças se desnudaram, sendo o sombrero patriarcal do Commendatore, que estava na posse da sua família desde a revolução de Rienzi, removido por seu consultor médico de serviço, Dr. Pippi. O erudito prelado que administrou as últimas ajudas da sagrada religião ao mártir herói no instante de pagar com a pena capital se ajoelhou em cristianíssimo espírito numa poça de chuva, sua sotaina sobre a cabeça encanecida, e ofereceu ao trono da misericórdia preces ferventes de súplica. Firme ao pé do cepo erguia-se a figura lúgubre do verdugo, seu semblante recoberto por um panelão de dez galões perfurado de duas aberturas circulares pelas quais seus olhos chispeavam furiosamente. No que esperava o sinal fatal experimentou o gume de sua arma hórrida afiando-o no seu musculoso antebraço ou decapitando em rápida sucessão um rebanho de ovelhas que fora fornecido pelos admiradores de seu cruel mas necessário ofício. Numa elegante mesa de mogno perto dele estavam ordenadamente dispostos o cutelo esquartejador, o variado instrumental finamente temperado do estripamento (especialmente suprido pela mundialmente famosa firma de cutelaria, os senhores John Round e Filhos, Sheffield), uma caçarola de terracota para a recepção do duodeno, colon, intestino cego e apêndice etc. ao serem bem-exitosamente extraídos e duas leituras adequadas destinadas a receber o preciosíssimo sangue da preciosíssima vítima. O ucheiro do asilo consolidado de gatos e cães estava presente para apresenar esses recipientes uma vez abastecidos àquela instituição beneficente. Um mui excelente repasto consistente de toicinho e ovos, carne frita e cebolas, feitos à maravilha, deliciosos pãezinhos quentes e chá revigorador, havia sido obsequiosamente fornecido pelas autoridades para consumação da figura central de tragédia que estava em espírito capitoso já que preparado para a morte e que demonstrava o mais genuíno interesse pela pragmática desde o começo até o fim, mas que, com uma abnegação rara nestes nossos tempos, se punha à altura da ocasião e exprimira o desejo mortal (a que se acedeu imediatamente) de que a refeição fosse dividida em partes alíquotas entre os membros doentes e indigentes da associação dos domésticos como penhor de sua consideração e estima. O nec e o non plus ultra da emoção foram atingidos quando a ruborizada noiva eleita rompeu caminho por entre as filas cerradas dos espectadores e se arremessou contra o peito musculoso daquele que se aprestava a ser lançado na eternidade por causa dela. O herói enlaçou a forma esbelta dela num amplexo amorável murmurando ternamente Sheila, minhazinha. Encorajada pelo uso do seu nome de baptismo ela beijou apaixonadamente todas as várias áreas adequadas da pessoa dele que a decência do traje penitenciário permitia ao ardor dela atingir. Ela jurou-lhe no que se mesclavam as salinas correntes de suas lágrimas que ela iria acarinhar sua memória, que ela jamais esqueceria seu jovem herói que se ia para a morte com uma canção nos lábio como se estivesse indo para uma partida de hóquei no parque de Clonturk. Ela trouxe de volta à remembrança dele os felizes dias da infância ditosa juntos nas ribeiras do Anna Liffey quando eles se compraziam em passatempos inocentes de jovens e, descuidosos do temebundo presente, eles ambos riam coroçoadamente, todos os espectadores, inclusive o venerável pastor, juntando-se à garrulice geral. Aquela audiência monstra simplesmente se contorcia de gozo. Mas em pouco eles eram vencidos pela mágoa e se afivelavam as mãos pela última vez. Uma nova torrente de lágrimas irrompia de seus ductos lacrimais e a vasta concorrência de gente, tocada no imo cerne, rompeu em soluços confrangedores, sendo não menos afectado o próprio prebendário ancião. Fortes homens graúdos, oficiais da paz e gigantes afáveis da polícia real irlandesa faziam franco uso de seus lenços e é válido dizer que não havia um olho seco naquela assembleia insuperada. Um incidente romanticíssimo ocorreu quando um elegante jovem graduado de Oxford, notado por seu cavalheirismo para com o belo sexo, galgou à frente e, apresentando seu cartão de visita, seu carné de banco e sua árvore genealógica, solicitou a mão da desventurada jovem senhorita, rogando-lhe que nomeasse o dia, sendo aceito de chofre. Cada senhora da audiência foi presenteada com um souvenir da ocasião de bom gosto na forma de um broche de crânio e ossos cruzados, um acto oportuno e generoso que avocou uma nova irrupção de emoção: e quando o galante jovem oxoniano (portador, diga-se em tempo, de um dos mais sempronrados nomes da história de Albion) colocou no dedo de sua ruborizada fiancée um custoso anel de compromisso com esmeraldas engastadas na forma de um trevo quadrifólio a excitação não conheceu limites. Sim, que até o duro marechal-preboste, tenente-coronel Tomkin-Maxwell ffrenchmullan Tomlison, que presidia à triste ocasião, ele que disparara um considerável número de sipaios da boca de canhão sem titubear, não pôde conter sua natural emoção. Com sua manopla de malha ele removeu uma furtiva lágrima e foi ouvido por acaso por aqueles privilegiados burgueses que acontecia estarem em seu entourage imediato a murmurar de si para si num cicio balbuciante:
— Deus me castigue se não é um pedaço, essa galinha aí dos meus pecados. Me castigue se não me dá uma vontade de ganir, no duro, que dá, só de ver ela e pensar na velha caravela que me espera lá em baixo em Limehouse.»

quarta-feira, fevereiro 06, 2008

ESCLARECIMENTO

A pedido do Provedor do Ouvinte, a posta logo aqui em baixo, subtitulada POSTA TEMPORÁRIA, que deveria por isso ser removida dentro de 15 dias, ficará no blogue por mais algum tempo na esperança de que isso contribua para o bem da Antena 2.

terça-feira, fevereiro 05, 2008

AO PROVEDOR DO OUVINTE - RTP

POSTA TEMPORÁRIA (Será eliminada no espaço de 15 dias).


Ao Exmo. Provedor do Ouvinte

[...]
Foi então que, num acesso de fúria com a verborreia matinal desenfreada da Antena 2, decidi escrever um email para lá.

E aqui tem em anexo (se tiver paciência para isso) a correspondência por mim trocada com o senhor ou Doutor director-adjunto da Antena 2, João Almeida. Para aquilatar do calibre cultural e profissional daquele senhor.

Mando-lhe esta correspondência porque ela, no meu entender, espelha bem o homem a quem, estou em crer, infelizmente, as suas (de V. Exa.) intervenções como provedor do ouvinte (que muitíssimo tenho apreciado), no meu entender, não demoverá da obstinação em transformar a Antena 2 em Antena 1.

Porque: ou os homens são cultos e há que esperar certas coisas deles; ou não são e nada se pode esperar. E é o caso, creio. Mas... na época do triunfo dos medíocres, o que se pode esperar?

Desculpe ocupar-lhe o seu tempo.

Cumprimentos.
[...]



Email de protesto enviado por mim:

«A quem de direito na Antena 2:

Basta dessa diarreia de palavras; dessa incontinência verbal permanente; desse desfiar ininterrupto de historietas sem interesse, cheias de banalidades – basta desse atentado anticultural que, salvo raríssimas excepções, se está a perpetrar quotidianamente aos microfones da Antena 2 da RDP.

Queremos música erudita!

Não queremos palavras, palavras, palavras!

Não queremos o lixo palavroso que nos tem sido servido!

Chega! Estamos todos fartos de sofrer com a situação actual da Antena 2.

Manda a mais pequenina réstia de bom senso que quem de direito dê uma varridela profunda na Antena 2 e lhe devolva a dignidade que já teve e que deve continuar a ter.»



Resposta do senhor director-adjunto [Com três chamadas de atenção, da minha responsabilidade, para erros ortográficos contidos no texto]:

«Senhor ouvinte.

Com que direito fala na 1ª pessoa do plural? "Queremos"? "Estamos todos"? Quem o nomeou ou mandatou para se apresentar como representante de todos? Porque se acha no direito de representar todos os ouvintes? Que presunção é essa? Porque não demonstra alguma modéstia e diz antes "quero", ou "estou farto"? Fique sabendo que não pensam "todos" como o senhor.
E mais: fique sabendo que NENHUMA rádio estatal clássica se comporta como rádio gira-discos. TODAS têm locução, ocupando com palavra, em média, cerca de 25% do tempo de antena (dados da UER - União Europeia de Rádios). A Antena 2 tem, ao longo de um dia, em média, 20% da emissão ocupada com locução. As rádios que têm menos tempo de locução são privadas e baseiam-se em play-lists(1), ou seja, são máquinas, e não pessoas, que escolhem a música. O senhor, obviamente, não gosta de ouvir falar porque já sabe tudo o que há para saber, e não precisa de (ou não quer que) ninguém que lhe diga nada. Mas, sendo esse o caso, escolha o senhor a sua própria música. Use CD's. A Antena 2 não se dirige a quem tem a certeza de que sabe tudo e não quer ouvir ninguém a falar. Dirige-se aos outros, que não conhecem tudo, ou pelo menos não têm essa presunção... e têm curiosidade em saber mais.
A Antena 2 feneceu ao longo de anos, com o auditório a envelhecer, tendo a média de idades passado de 45 para 55 anos ao longo de uma década. Isto quer dizer que eram sempre os mesmos a escutar, e que íam(2) envelhecendo, ou até morrendo, sem que a A2 mobilizasse as novas gerações. Os últimos estudos de audiências (ao longo do último semestre) comprovam que o auditório da A2 rejuvenesceu, com a média etária dos ouvintes a passar dos 55, de novo, para os 45 anos, e com tendência para rejuvenescer ainda mais. Significa que o auditório está a mudar, com pessoas mais jovens, algo que o deverá certamente enervar, já que o senhor, claramente, não gosta do nosso tempo. Problema seu. Não queira é impôr(3) o seu parâmetro aos outros, nem ter a pretensão de que representa todos... porque na verdade, simplesmente, só se representa a si próprio.

Passe bem.

João Almeida»

[ (1) Escreve-se playlists e não “play-lists”]
[ (2) Escreve-se iam (sem acento agudo no “i”) e não “íam”]
[ (3) Escreve-se impor (sem acento circunflexo) e não “impôr”]





Contra-resposta minha:

«Senhor João Almeida:

A sua resposta ao meu protesto merece-me a seguinte contra-resposta:

Quem preza a Língua Portuguesa sabe que o uso da primeira pessoa do plural pode ser feito por qualquer sujeito individual quando este pretende retirar a um texto ou fala a carga de arrogância que o uso da primeira pessoa do singular lhes transmitiria. Faça este exercício simples e conclua por si: pegue no texto do meu protesto e substitua o plural pelo singular e veja a diferença. Não que o texto que lhe enviei não continuasse, mesmo assim, a ser arrogante; mas, lendo a sua resposta, se calhar, o senhor mereceria que o tivesse escrito na primeira pessoa do singular.

Mesmo sem "nomeação" ou "mandato" sempre lhe vou dizendo que se estivesse minimamente atento ao que se escreve (nos blogues, por exemplo) admitiria que eu pudesse, falando no plural, como ouvinte, interpelar "quem de direito na Antena 2" (não a si pessoalmente) sobre aquilo que no meu entender (e, pelos vistos, não só no meu) é o mar de palavras sem interesse que hoje afoga a música nessa rádio.

Só lhe vou dar dois exemplos, entre muitos (com sublinhados meus):

Exemplo I

No dia 04-01-2006, Pacheco Pereira escrevia o seguinte no blogue "Abrupto":»

«BOAS COISAS NA COMUNICAÇÃO SOCIAL PORTUGUESA EM 2005, VISTAS POR UM GRANDE (EM QUANTIDADE) CONSUMIDOR
...

PÉSSIMAS COISAS NA COMUNICAÇÃO SOCIAL PORTUGUESA EM 2005, VISTAS PELO MESMO»
...
«A Antena 2 é demasiado loquaz. Muito se fala naquela rádio, num tom entre o pedante e o falsamente íntimo, tirando limpidez à música. »

«Tem aqui o link para confirmar:
http://abrupto.blogspot.com/2006_01_01_abrupto_archive.html
#113640941290714023

Exemplo II

No dia 11-01-2006 Álvaro José Ferreira escrevia o seguinte no blogue "Bem Comum":»
...
«Admito que a Antena 2 precisasse de alguns ajustamentos de modo a torná-la menos temática e mais ecléctica (a exemplo do canal 3 da BBC Radio), mas parece-me que há uma forma mais adequada e eficaz de conquistar novos públicos para o canal do que fazer cedências à facilidade.
...
Talvez com esta grelha a Antena 2 venha a conquistar alguns dos tradicionais ouvintes da Antena 1 que não se revêem na programação musical que vem sendo implementada. É provável que as audiências subam, mas haverá certamente a fuga de alguns melómanos mais exigentes e exclusivistas da música clássica. Talvez os ouvintes que venham a ser conquistados ultrapassem em número os que vão desertar, mas há uma questão que se impõe: não estará a Antena 2 a desempenhar agora uma parte do papel que caberia à Antena 1?»

« Nota: Estando a RTP e a RDP sob a alçada da mesma administração, e tendo a obsessão com as audiências sido abandonada na televisão, não entendo ela estar a ter a sua máxima expressão na rádio. Tal dever-se-á ao facto da rádio ter menos visibilidade e, como tal, ser descurada pelo poder político? Se alguém tiver uma explicação verosímil, faça o favor de ma dar.»

«Tem aqui o link para confirmar:
http://bemcomum.blogspot.com/2006/01/nova-grelha-da-antena-2-entrou-em.html

Como vê, não estou só.

Certamente não ignora que ainda existem tertúlias em Portugal. Pois então digo-lhe que eu frequento tertúlias onde se debate música e onde se tem falado da programação da Antena 2. É um direito dos ouvintes. Por isso sei o que é que pensam muitas outras pessoas sobre a desvirtuação que a programação da Antena 2 tem sofrido no sentido da sua aproximação qualitativa a um baixo patamar cultural. E também por esta razão julgo também poder falar no plural.

Diz-me que estão a fazer isso para captar mais público jovem. Olhe: aconselho-o a ler "Apocalípticos e Integrados", de Umberto Eco, para conhecer a opinião deste ilustre intelectual e linguista de renome internacional, entre outras coisas sobre a transmissão de conhecimentos eruditos ao grande público. Ficará a saber que Eco é de opinião que quando se quer transmitir conteúdo erudito a alguém não se deve transigir na linguagem (que deve sempre ser erudita) pois que, quando esta não é entendida logo à primeira, obriga o destinatário a cultivar-se até que a compreenda e passe, por isso, a ser um pouco mais culto do que era – quer porque passou a compreender essa linguagem, quer ainda porque passou a ter mais conhecimentos veiculados por essa mesma linguagem (conhecimentos só passíveis de serem bem transmitidos se se não fizer «cedências ao facilitismo»).

Mas se a grande preocupação dos gestores da Antena 2 vai continuar a ser a procura desesperada de (qualquer) audiência, então dou-lhe uma receita infalível: transmitam programas desportivos e antenas abertas sobre o desporto; transmitam relatos de futebol com música erudita nos intervalos. Vai ver que conseguirão captar, num instante, uma larguíssima fatia de ouvintes.

Agora permita-me que lhe diga o quão desiludido fiquei com a qualidade da sua resposta.

Fui saber quem o senhor era e disseram-me que é o director-adjunto da Antena 2 (se me informaram mal peço desculpas).

Então, senhor director-adjunto, é assim, desse modo ligeiro, pesporrente e auto-suficiente, que se permite, no exercício do seu cargo, dirigir-se a um ouvinte anónimo que faz um protesto (indignado embora) contra uma rádio que considera palavrosa e pouco culta? (Rádio que fora, até há pouco tempo, na opinião desse ouvinte, de muito melhor qualidade).

É assim que se responde?

Eu não me dirigi a si pessoalmente. Eu dirigi-me a "quem de direito na Antena 2". Que esse "quem de direito" seja o senhor, muito bem! Mas quando me responde de forma pessoal, sem se identificar do ponto de vista profissional, nos termos ligeiros e pouco dignos em que o faz, desqualifica-se profissionalmente (é a minha opinião) e dá uma péssima imagem da cúpula que hoje dirige a Antena 2.

Não sei se o Conselho de Administração da RDP ficaria contente em conhecer o texto integral do meu protesto e o da sua resposta.

Creio que, no mínimo, ficaria desapontado. Consigo, senhor director-adjunto.

Não sei se quer fazer essa experiência. Quer? É uma hipótese a considerar.

Vá por mim, senhor director-adjunto: quando ocupamos cargos de chefia, ainda por cima ao nível de director ou de director-adjunto, devemos ter estofo suficiente para engolir certos sapos e continuar a dar uma imagem polida do cargo, mesmo quando somos atingidos por aquilo que consideramos injusto (e, em certos casos, até, ofensivo). Devemos alardear superioridade moral (de preferência devemos tê-la efectivamente). Não devemos perder a cabeça e desatar à pancada com cada protestante. É que o senhor é pago também para ser polido e educado

Poderá dizer-me que eu não tenho o direito de fazer o protesto nos termos em que o fiz. Até posso concordar consigo neste aspecto e pedir desculpas. Mas eu sou apenas um simples e anónimo ouvinte e contribuinte fiscal com algum direito à indignação quando acho que esse bem público que é a Antena 2 está a morrer no seu propósito de veicular adequadamente música erudita (ou isso já não faz parte dos estatutos dessa rádio?). Mas ao senhor, no cargo que ocupa, está-lhe vedado, deontologicamente, ser malcriado. É que, sendo-o, mancha logo o nome da Antena 2; e o da RDP. Ou será que isso não interessa?!

Para terminar quero ainda dizer-lhe que continuarei a lutar para a melhoria substancial da qualidade da programação da Antena 2, e por uma maior dignificação dessa rádio. Não ficarei pelo protesto que enviei a "quem de direito". Se for preciso chegar mais longe, tentarei consegui-lo. Porque a Antena 2 não é de ninguém em particular. É de todos.

Passe também muito bem.»

segunda-feira, novembro 12, 2007

UM POEMA NO "ABRUPTO"

(Novembro de 2007)

The First Men on Mercury

-We come in peace from the third planet.
Would you take us to your leader?

-Bawr stretter! Bawr. Bawr. Stretterhawl?

-This is a little plastic model
of the solar system, with working parts.
You are here and we are there and we
are now here with you, is this clear?

-Gawl horrop. Bawr Abawrhannahanna!

-Where we come from is blue and white
with brown, you see we call the brown
here ‘land’, the blue is ‘sea’, and the white
is ‘clouds’ over land and sea, we live
on the surface of the brown land,
all round is sea and clouds. We are ‘men’.
Men come –

-Glawp men! Gawrbenner menko. Menhawl?

-Men come in peace from the third planet
which we call ‘earth’. We are earthmen.
Take us earthmen to your leader.

-Thmen? Thmen? Bawr. Bawrhossop.
Yuleeda tan hanna. Harrabost yuleeda.

-I am the yuleeda. You see my hands,
we carry no benner, we come in peace.
The spaceways are all stretterhawn.

-Glawn peacemen all horrabhanna tantko!
Tan come at’mstrossop. Glawp yuleeda!

-Atoms are peacegawl in our harraban.
Menbat worrabost from tan hannahanna.

-You men we know bawrhossoptant. Bawr.
We know yuleeda. Go strawg backspetter quick.

-We cantantabawr, tantingko backspetter now!

-Banghapper now! Yes, third planet back.
Yuleeda will go back blue, white, brown
nowhanna! There is no more talk.

-Gawl han fasthapper?

-No. You must go back to your planet.
Go back in peace, take what you have gained
but quickly.

-Stretterworra gawl, gawl…

-Of course, but nothing is ever the same,
now is it? You’ll remember Mercury.

(Edwin Morgan)

segunda-feira, outubro 15, 2007

Umberto Eco in La Repubblica

(Janeiro de 2004)
Os olhos do Duce

Fiz anos há uma semana e, ao festejar a data com as pessoas que me são mais chegadas, reevoquei o dia do meu nascimento. Ainda que dotado de excelente memória, o momento em si não o recordo, mas pude recons­tituí-lo através das histórias que os meus pais me contaram. Parece que quando o médico me extraiu do ventre da minha mãe, feito tudo o que tem de ser feito nestes casos, apresentou-lhe o admirável fruto das suas dores e exclamou: «Veja que olhos, parece o Duce!» A minha família não era nem fascista nem antifascista — como tantas outras da pequena burguesia italiana, encarava a ditadura como um facto meteorológico —, mas era seguramente emocionante para um pai e uma mãe ouvirem dizer que o recém-nascido tinha os olhos do Duce.
Agora, com o cepticismo próprio da idade, inclino-me mais para a ideia que aquele médico dizia a mesma coisa a todas as mães e a todos os pais — e, olhando-me no espelho, vejo-me mais parecido com um grizzly do que com Mussolini, mas isso pouco importa. Os meus pais estavam felizes por saber que eu me parecia com o Duce.
Pergunto-me o que é que um médico adulador diz hoje a uma mãe que acabou de dar à luz. Que o produto da sua gestação se parece com Berlusconi? Provoca-lhe uma depressão. Presumo que qualquer médico dotado de um mínimo de sensibilidade vá buscar outros exemplos — os olhos e a expressão de um apresentador de televisão, o sorriso de um actor, etc. Cada época tem os seus mitos. A época em que nasci tinha como mito o Homem de Estado, a dos que nascem hoje tem como mito o Homem da Televisão.
A última afirmação de Berlusconi («ninguém lê jornais, mas toda a gente vê televisão») foi interpretada com a habitual cegueira da cultura de esquerda e classificada como mais uma das suas insultuosas gafes, Só que não era nenhuma gafe: era um acto de arrogância, mas não era nenhum disparate. Somando todas as tiragens dos jornais italianos, obte­mos um total bastante irrisório em relação ao número de pessoas que só vêem televisão. Sabendo nós que só uma parte da imprensa italiana critica ainda o actual governo, e que toda a televisão, RAI e Mediaset, se con­verteu na voz do poder, Berlusconi nunca esteve tão dentro da razão. Nos dias que correm, os jornais podem dizer o que bem lhes apetecer, porque a chave do poder reside no controlo da televisão.
Este é um dado de facto, e os dados de facto são por natureza inde­pendentes das nossas preferências.
Parti destas premissas para sugerir que as ditaduras do nosso tempo, a existirem, têm de ser ditaduras mediáticas e não políticas. Há quase cinquenta anos, escreveu-se pela primeira vez que, salvo os casos de alguns países remotos do Terceiro Mundo, já não eram precisos tanques para se fazer cair um governo: bastava ocupar as estações de rádio (a últi­ma pessoa a ignorar este facto foi Bush, líder terceiromundista que por engano chegou ao governo de um país altamente desenvolvido). Agora, o teorema foi demonstrado.
É errado dizermos que não se pode falar de «regime» berlusconiano, porque a palavra «regime» evoca o regime fascista, e o regime em que vivemos não tem as características do daquele vinténio. Um regime é uma forma de governo, não necessariamente fascista. O fascismo abolia a liberdade de imprensa, ao passo que o regime mediático de Berlusconi não é tão tosco e antiquado. Sabe que o consenso é assegurado pelo con­trolo dos meios de informação mais invasivos. Quanto ao resto, não custa nada permitir que haja muitos jornais que critiquem o governo (permissão que só é válida até ao dia em que for possível comprar esses jornais — refiro-me à propriedade, não a uma cópia). Para que é que serve desterrar Biagi(XX"), correndo o risco de convertê-lo num herói? Basta impedi-lo de voltar a falar na televisão, esperando que caia no esqueci­mento.
A diferença entre um regime mediático e um regime como o fascista é que no segundo toda a gente sabia que os jornais e a rádio só transmi­tiam informações vindas do governo, e que não se podia ouvir a Rádio Londres, sob pena de prisão. Precisamente por isto, no tempo do fascis­mo, as pessoas desconfiavam dos jornais e da rádio, ouviam a Rádio Londres com o volume no mínimo, e só confiavam nas notícias que lhes chegavam através do burburinho, do boca a boca, da maledicência. Num regime mediático em que, digamos, dez por cento da população tem acesso à imprensa de oposição enquanto o resto recebe as notícias atra­vés de uma televisão controlada, vigora, por um lado, a convicção de que é permitido discordar («há jornais que dizem mal do governo, e a prova é que Berlusconi se queixa sempre deles, logo há liberdade») e, por outro lado, o efeito de realidade causado pelo impacte da notícia televisiva leva a que só se saiba e só se acredite naquilo que diz a televisão («se sei que é verdade que um avião caiu ao mar, mais verdadeiro é se vir as sandá­lias dos mortos a boiar, e não interessa se por acaso são sandálias de um desastre anterior, tiradas das imagens de arquivo»).
Uma televisão controlada pelo poder não tem necessariamente de censurar as notícias. Claro, há sempre tentativas de censura por parte dos escravos do poder, e em Itália tivemos recentemente o caso Biagi que, felizmente, aconteceu ex post (para usar a expressão característica daque­las pessoas que também dizem «é só um momentinho» e «pool» position). Foi considerado inadmissível que alguém dissesse mal do chefe do go­verno de forma tão aberta (esquecendo-se de que num regime democrático se pode e se deve dizer mal do chefe do governo, caso contrário a demo­cracia converte-se num regime ditatorial). Mas estes são apenas os casos mais visíveis (e, se não fossem trágicos, risíveis). O problema é que se pode instaurar um regime mediático pela positiva, dando a impressão de que se diz tudo. Basta saber como dizê-lo.
Se nenhuma televisão transmitisse as opiniões de Fassino(xx"') sobre esta ou aquela lei, os telespectadores começariam a suspeitar que a tele­visão estava a ocultar algo, porque sabem que existe uma oposição.
O que a televisão de um regime mediático faz é recorrer ao artifício retó­rico da «concessão». Vejamos um exemplo. Há pelo menos cinquenta prós e cinquenta contras acerca da conveniência de se ter um cão. Os prós são que o cão é o melhor amigo do homem, que pode ladrar se aparece­rem ladrões, que as crianças iam adorá-lo, etc. Os contra são que é pre­ciso levá-lo todos os dias a fazer as suas necessidades, que se gasta dinheiro na comida e no veterinário, que é difícil levá-lo de viagem... Admitindo que queiramos defender os cães, o artifício da concessão fun­ciona da seguinte maneira: «É verdade que os cães custam dinheiro, que representam uma escravidão, que não se podem levar de viagem» (e os adversários dos cães sentem-se conquistados pelo nossa honestidade), «mas é preciso pensar que são uma óptima companhia, que as crianças os adoram, que nos protegem dos ladrões, etc.» Esta seria uma argu­mentação persuasiva a favor dos cães. Contra os cães, poderíamos con­ceder que são uma óptima companhia, que as crianças os adoram, que nos protegem dos ladrões, mas teríamos de seguir a argumentação oposta, ou seja, que os cães representam uma escravidão, uma despesa, um obs­táculo às viagens. Teríamos assim uma argumentação persuasiva contra os cães.
A televisão funciona desta maneira. Quando se discute uma lei, a televisão enuncia-a e dá de imediato a palavra à oposição, com todos os seus argumentos. Depois volta a transmitir o ponto de vista dos defen­sores do governo, que objectam contra as objecções da oposição. O resul­tado persuasivo é invariavelmente o mesmo: o último a falar tem sempre razão. Sigam com atenção os telejornais, e verão que a estratégia é esta: a seguir à apresentação do projecto, nunca aparecem em primeiro lugar os apoiantes do governo e, em segundo, as objecções da oposição. É sempre ao contrário.
Um regime mediático não tem necessidade de mandar prender os opositores. Não os reduz ao silêncio através, mas fazendo ouvir as suas razões em primeiro lugar.
Como é que podemos reagir a um regime mediático, dado que para reagir seria necessário termos acesso aos media, que são controlados pelo próprio regime?
Enquanto a oposição italiana não encontrar uma solução para este problema e continuar a deleitar-se nos seus choques internos, Berlusconi vencerá.

(xx") Enzo Biagi, conhecido jornalista, apresentou durante sete anos na RAI 1 o programa diário «Il Fatto», em que analisava os acontecimentos mais importantes da actualidade política e social. Em 2002, na sequência de uma polémica intervenção de Roberto Benigni no programa, o governo de Silvio Berlusconi considerou ter havido um «uso criminoso da televisão pública» e «Il Fatto» acabou por ser suspenso. Posteriormente, Biagi foi convidado a retomar as emissões na RAI 3, mas declinou por «motivos pes­soais». (N. da T.)

(xx" 'a Piero Fassino, secretário-geral dos Democratas de Esquerda. (N. da T.)

sábado, outubro 29, 2005

DOIS POEMAS DE RILKE

SOLIDÃO

A solidão é como uma chuva.
Ergue-se do mar ao encontro das noites;
de planícies distantes e remotas
sobe ao céu, que sempre a guarda.
E do céu tomba sobre a cidade.


Cai como chuva nas horas ambíguas,
quando todas as vielas se voltam para a manhã,
e quando os corpos, que nada encontraram,
desiludidos e tristes se separam;
e quando aqueles que se odeiam
têm de dormir juntos na mesma cama:

então, a solidão vai com os rios...




DIA DE OUTONO

Senhor: é tempo. O Verão foi muito longo.
Lança a tua sombra sobre os relógios de sol
e solta os ventos sobre os campos.

Ordena aos últimos frutos que amadureçam;
dá-lhes ainda dois dias meridionais,
apressa-os para a plenitude e verte
a última doçura no vinho pesado.

Quem agora não tem casa, já não vai construí-la.
Quem agora está só, assim ficará por muito tempo,
velará, lerá, escreverá longas cartas
e vagueará inquieto pelas alamedas acima e abaixo,
quando caírem as folhas.


(Rainer Maria Rilke)

sábado, outubro 08, 2005

RECEITA DE MULHER


As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental. É preciso
Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso
Qualquer coisa de dança,
qualquer coisa de haute couture
Em tudo isso (ou então
Que a mulher se socialize
elegantemente em azul,
como na República Popular Chinesa).
Não há meio-termo possível. É preciso
Que tudo isso seja belo. É preciso
que súbito tenha-se a
impressão de ver uma
garça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor só
encontrável no terceiro minuto da aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas
que se reflicta e desabroche
No olhar dos homens. É preciso,
é absolutamente preciso
Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que
umas pálpebras cerradas
Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços
Alguma coisa além da carne: que se os toque
Como no âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos então
Nem se fala, que olhe com certa maldade inocente. Uma boca
Fresca (nunca húmida!) é também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas,
e as pontas pélvicas
No enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras:
uma mulher sem saboneteiras
É como um rio sem pontes. Indispensável.
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
A mulher se alteie em cálice, e que seus seios
Sejam uma expressão greco-romana, mas que gótica ou barroca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas que haja um certo volume de coxas
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem
No entanto, sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!).
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos
Discretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso, e na face
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior
A 37 graus centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras
Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se fechar os olhos
Ao abri-los ela não estará mais presente
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber
O fel da dúvida. Oh, sobretudo
Que ela não perca nunca, não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
O impossível perfume; e destile sempre
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
Do efémero; e em sua incalculável imperfeição
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.
(Vinicius de Moraes)

MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS

Machado de Assis

Fonte:
Assis, Machado de. Obra Completa. vol. I, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994

Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Texto-base digitalizado por:
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
(http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/literat.html)

Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para bibvirt@futuro.usp.br

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terça-feira, junho 14, 2005

DIZERES DE AMOR

Padeço, amor, porque me falta a sensualidade dos teus lábios carnudos nessa tua boca de romã onde cada beijo era uma aventura indescritível que acabava sempre em êxtase deixando-me no desejo louco de te possuir até à completa diluição de nossos corpos e seres.

Padeço porque me falta teu corpo de Afrodite, de mulher-cosmos, de mulher-sensualidade, corpo em que me perdia inebriado pela sinfonia de aromas exóticos que o povoam e do qual eu saía sempre renascido pois que, no dizer do poeta, tu és sol, ambrósia e mel.

Padeço, enfim, porque me falta a presença da tua doce e sedutora personalidade de Eva bíblica com quem cometi o pecado original que me estigmatizou definitivamente mas do qual nunca me arrependerei pois que sem ele o significado da Vida seria um equívoco histórico de aceitação impossível.

Padeço por não te ter, minha Mulher, minha Amiga, minha Amante.

Padeço.

terça-feira, julho 20, 2004

EXALTAÇÃO DA TORTILHA DE BANANA


Por: Enrique Lanza (escritor cubano)
Narrativa publicada no número 1 da Revista Critério
Director: João Palma Ferreira
Director Adjunto: Alexandre O?Niell
(Novembro de 1975)


Em certas ocasiões, especialmente feriadas, preparada pela mão incrível de meu pai, aparece na nossa mesa uma tortilha de bananas, de um sabor e de um aspecto entre o onírico e o pornográfico... A banana, como é bem sabido, apresenta, no seu estado natural, um aspecto nitidamente falusco; mas quando se torna friável, num estado avançado de maturação, e se mistura com ovo batido, o seu aspecto muda de uma maneira crisálica, convertendo-se numa espécie de incrível filete púbico. Poucas vezes - creio - se viu tamanha transformação na História, salvo no caso, talvez, da estranha aventura de Orlando, e na história - bastante desprezível, por certo - de determinados transformistas de feira barata.
Seja como for, a execução desta tortilha por parte de meu pai é sempre um labor de natureza particularmente mística. As bananas são fritas (ou frigidas, que neste momento pouco importam tais signos de depravação), com chama muito baixa, até se atingir, quase, o ponto sublime da calcinação; acto contínuo, depositam-se quatro ovos batidos na frigideira... mas façamos uma paragem: é impossível continuar desta maneira sem pormenorizar, ainda mais minuciosamente, a fritura, ou frigidura, dos pedaços de bananas maduras: estes devem frigir-se não só muito lentamente, mas também com uma espécie de balanceio e com um sibilar indescritível, de inspiração marcadamente gregoriana, por parte do cozinheiro. Mesmo assim, devem colocar-se, junto da frigideira, outros ingredientes, tais como açúcar, louro, cravinho e demais especiarias, além de pimenta, de que o cozinheiro, num qualquer momento imprevisto, podia necessitar em microscópicas quantidades. Tais condimentos devem colocar-se em tarros de porcelana ou, a não ser assim, em tigelas de barro cozido, juntamente com rodelas de beterraba, limão e tangerina, bem como alguns rabanetes e, uma que outra vez, uma cenoura envolta em folhas de alface, além de um pedaço de azedas. Todos estes ingredientes, destinados exclusivamente ao gozo estético de meu pai, exercem não pouca influência sobre o processo de frigir as bananas; se algum deles faltasse, seria impossível predizer o resultado da operação, que chega ao seu momento apiçacúmico quando o meu pai, mergulhado praticamente em transe, leva um à boca e o prova. Disto depende, em grande parte, o êxito da tortilha, que ainda está, por assim dizer, em estado fetal.
Preparadas as bananas, seleccionados os bocados mais delicados, procede-se à imersão dos ovos batidos na frigideira. Estes ovos não podem ser ovos normais e correntes, como esses que é possível passar por água; pelo contrário, enquanto que naqueles é recomendável uma palidez quase botticéllica, os ovos para a tortilha de bananas devem ter, nas suas gemas, um pouco de Van Gogh e um pouco de Breughel, e nas suas claras, um branco puramente construtivista, ascético, quase - e é delicioso este quase - virginal. O partir do ovo é também todo um procedimento cabálico, com o qual iriam às mil maravilhas alguns dramas litúrgicos cantados por monges beneditinos (nota à margem: apesar de ter recomendado uma infinidade de vezes este acompanhamento a meu pai, ele nega-se a utilizá-lo, devido a problemas puramente pessoais e sacrificando nas aras de um racionalismo extremo quando é chegada a hora da confecção dos pratos, já que a não ser assim - explica - passaríamos madrugadas inteiras partindo ovos, embelezados com cânticos inquisitoriais). O ovo, na sua ruptura, deve formar dois semielipsóides perfeitos, o que parcialmente se consegue com a ajuda de um escalpelo do aço especialmente fino usado correntemente para imprecisas investigações sobre o globo ocular por alguns médicos croatas, e que foi enviado expressamente de Belgrado por um doutor Armagedónic, excelente amigo cá de casa entusiástico admirador da ciência das tortilhas de banana «à la havanaise», que assim baptizadas foram recentemente, por um advogado australiano, as tortilhas que meu pai ocasionalmente prepara para um grupo de iniciados. Quando isto sucede, contam-se inúmeras complicações nas companhias de aviação, tais como intrigas, raptos, violações, chantagens, por causa do interesse dos nossos amigos em virem comer a tortilha, e acontece que, de repente, recebemos um cabograma de Singapura no qual um amigo nos informa que chegará, talvez, com seis horas de atraso, em voo fretado especialmente, a partir de Acra, com o que se complica naturalmente a ordem dos convidados e, o que é mais, se dificulta extraordinariamente a determinação da hora exacta em que se começará a servir, no meio de fanfarras e de faixas de cores, a tortilha.
Mas voltemos aos ovos. Eu disse anteriormente que, no momento da ruptura, o elipsóide deve formar dois semielipsóides perfeitos, mas não tinha falado ainda (confio em que o leitor desculpará este modesto narrador) sobre a coloração que é forçoso tenha a casca do ovo: se o seu interior deve apresentar uma coloração paradisíaca, a casca, lamentavelmente, peca pela sua crueza. Após muitos anos de buscas e investigações, meu pai chegou à triste conclusão de que a casca, como uma boa parte da Natureza, raramente é bela quando o interior cumpre os requisitos indispensáveis para a execução do manjar sublime.
De vez em quando, no entanto, acontece que a casca, que geralmente vem com incríveis sujidades (manchas castanhas, restos de bâton), aparece completamente branca, quase cristalina, e então entra-se nos preparativos da Grande Tortilha de Bananas «A La Havanaise», que geralmente é saboreada por um grupo ainda mais escolhido de provadores; quando tal sucede, a lista de convidados é dividida em quadrantes terrestres, para evitar desnecessários derramamentos de sangue.
Dito isto, passemos à cocção da tortilha propriamente dita, não sem, primeiro, anotar um pormenor de absoluto requinte por parte de meu pai: minutos antes de verter os ovos batidos, meu pai escolhe, de um prato de cristal transparente, as bananas que não foram seleccionadas para a tortilha, e entrega uma banana a cada um dos comensais, para saber a sua opinião. O sabor requintado das bananas preteridas exalta, naturalmente, o entusiasmo da assistência, que, arroubada, se prepara para contemplar o espectáculo raro, quase único, que representa ver meu pai no acto de depositar, numa frigideira niquelada, com incrustações de nácar no cabo, o conteúdo de um jarro de porcelana dourada com motivos de inspiração nitidamente bizantina que contém os ovos previamente batidos com um garfo de ouro recamado de pedras falsas que fez parte - hoje, finalmente, pode dizer-se - do enxoval de Emoke, uma das últimas esposas de Átila. No momento em que o conteúdo do jarro cai na frigideira, é costume produzirem-se exclamações de assombro entre os convidados (uma vez, a embaixadora das Galápagos caiu em estado de coma durante mais de dez dias, ante a impressão do espectáculo), já que nesse momento, e não em outro, se pode ouvir, suavemente, o começo da «Suite número dois, em «Si» menor», de Bach, que transporta os convidados a uma quase levitação corporal. Devo esclarecer que uma circunstância muito importante nesta fase da operação é a de que a gordura usada para frigir a tortilha tem de ser a mesma que se usou para frigir as bananas. Se tal não suceder, todo o encanto se perderá definitivamente e a tortilha jamais adquirirá o «éclat» imprescindível à tortilha de bananas «á la havanaise», da qual a minha família e eu vivemos plena e justificadamente orgulhosos.
Durante o processo de cocção da tortilha, meu pai manda que o deixem sozinho, mantendo a porta da sala onde se frege a tortilha hermeticamente fechada. Filtram-se apenas, por causa duns gonzos que nunca foram arranjados, algumas árias de Scarlatti e um vago olor a asas de mariposa queimadas, que, segundo o nosso amigo doutor Armagedónic, são o que imprime esse gosto peculiar à tortilha, ao serem aspergidas, dissolvidas em óleo de rosas, sobre a frigideira. Este tema continua a ser objecto de controvérsia e ouviram-se, certa noite de Junho, os alaridos de um libanês no momento em que caía do nosso terraço emaranhado ainda numa discussão a esse respeito com uma judia que se vangloriava de ser a descendente directa das que, faz tempo, cozeram o pão que ofertava nas suas bacanais um patrício nazareno. Seja como for, o mistério da cocção da tortilha permanece indecifrado e disso posso vangloriar-me, pois quando chegar o momento oportuno aprendê-lo-ei de meu pai.
Decorridos uns minutos (9,34660785342, segundo o nossa bom amigo Wohlin, o relojoeiro suíço), no momento em que a conversa está a pontos de elanguescer, um trinar de canários e uma chuva de pétalas sobre o salão anunciam que a tortilha foi concluída. No instante em que o último canário emite a sua última nota, no preciso momento em que a última pétala acaba de cair no soalho, ouve-se um acorde de trombetas (um arranjo sobre um tema de Vivaldi) e abre-se, majestosamente, misteriosamente, sem rangidos, a porta de dois batentes da sala onde se prepara a tortilha. Os comensais penetram na sala no meio de grande vozear, empurrando-se uns aos outros, embora sejam logo misticamente detidos pelo som de um gongo persa que os paralisa. Meu pai, então, volta-se, e lançando aos comensais o seu mais alquímico sorriso, diz, isto é, sussurra, extenuado: «A tortilha está pronta.» Então, de todas as portas da sala saem mordomos, lacaios, odaliscas e, para dar corpo e homenagem ao toque nacional, um tocador de bongó, saudando, por entre aleluias e hurras, o advento da tortilha. Com os acordes do «Messias», saem todos, em tropel, pela porta do salão, e dispõem-se em fila, lutando pelos melhores lugares para fruir do incrível aroma e da beleza sem igual da tortilha de bananas.
Quando a criadagem já se retirou, meu pai manda que se fechem as portas e, com uma expressão totalmente metafísica, depois de enxugar o suor da fronte com um lenço de seda indiana, proporciona aos seus comensais a contemplação do fruto do seu esforço: a tortilha de bananas perfeita, o «non ptus ultra» das debilidades humanas, oferecida à enlevada degustação dos seus convidados e dele próprio. Exclamações tais como «perfeito», «sublime», « genial», «maravilhoso», proferidas em todas as línguas, com todos os sotaques, já não impressionam a meu pai. A mim ainda, confesso, e marejam-se-me os olhos de lágrimas à simples recordação do celestial espectáculo que oferece a tortilha de bananas. Mas deixem que lhes descreva a sua aparência, quando ainda dentro da frigideira: os senhores talvez julguem, candidamente, que a tortilha é branca, límpida, cristalina; penaliza-me ter de os desiludir: a tortilha, ao sair, tem todas as cores, do amarelo-limão ao castanho-caramelizado, passando (em algumas zonas em que meu pai faz alarde do seu génio) ao quase negro. Os pedaços de bananas, incomparavelmente vermelhos, saem por vezes dessa massa dourada, conferindo à tortilha o aspecto da mais valiosa jóia ateniense, e recordando vagamente as esculturas da Grécia arcaica; a tortilha compendia todas as curvas, os salientes e os entrantes que, por certo, já estudou a Geometria dita analítica. É uma jóia decorada por pintores flamengos, um mosaico bizantino, enfim, o elixir «vitae» sob a aparência da tortilha de bananas, a tortitha de bananas « à la havanaise», feita de pedaços do Yang, do Kamassutra: a perfeição afiançada na vida terreal.
Cessadas as exclamações, meu pai volta-a, fazendo admirar os seus flancos rosados e, finalmente, o seu reverso, que repete, exactamente, as tonalidades do anverso (depois desta demonstração, é, frequentemente, necessário que se vá buscar sais aromáticos para alguma dama ou algum diplomata nórdico, sempre demasiado sensíveis a estas emoções místicas, puramente equatoriais).
Acto contínuo, meu pai passa a tortifha para um prato amarelo-limão - a eleição da cor deste prato levou anos de intenso estudo e é de vital importância -, onde a tortilha de bananas é cortada em pedaços com uma faca de obsidiana. Nesta operação vê-se, pela primeira vez, o interior da tortilha, fresco como um manancial e desprendendo os vapores de um géiser, onde o vermelho das bananas se converte em ouro velho (sem dúvida por causa da oxidação). Isto ocasiona novas exclamações e um ou outro grito histérico por parte de uma qualquer marechala e todos os convidados, com os olhos fora das órbitas, sonham com o pedaço que lhes caberá, acariciam-no mentalmente, devoram-no com o pensamento.
O momento de ir buscar os pratos é muito importante e meu pai, geralmente, pede a cooperação de um convidado para tirar os pratos turquesa dos armários de sândalo vermelho. Depois de escolher os pratos, reserva um para cada convidado, e vai depositando nele o seu pedaço de tortilha, enviando-o por um criado ao grande salão de jantar, que foi previamente decorado, tendo em vista a ocasião, com pesados damascos, filigranas antigas, tapetes persas, cortinas de seda e, sobre a mesa - que emoção contar isto! Senhor, dá-me forças para continuar! -, sobre a mesa, um maravilhoso serviço de Baccarat, umas taças tão fantásticas que nem sequer precisam de ser tocadas para musicalmente vibrarem, umas taças que, sozinhas, animam a festa com o seu angélico retinir. Além das taças, o nosso serviço de prata com as iniciais da família, os nossos guardanapos bordados com o nosso cunho heráldico, o centro de mesa de Sèvres, repleto de rosas e de lírios. A um canto do grande salão, meio escondido por uma cortina de renda, um quarteto de cordas toca Mozart, animando com encantos pastoris o recanto provençal com incrustações de marfim e de ébano onde se servem os repastos.
Quando o último prato é servido, meu pai, com um gesto cheio de graciosidade, convida os presentes a iniciarem o ágape, desejando-lhes a melhor das degustações (é de notar a sublime cortesia que faz com que meu pai não deixe ninguém acompanhar o seu próprio prato antes obrigando os convidados a permanecerem juntos, para evitar injustas acusações). Seguidos pelas vozes dos criados, os convidados, por fim, penetram no nosso santuário e ocupam os seus lugares (como foi utilizado um nónio no momento de cortar a tortilha, não pode haver querelas acerca do tamanho dos pedaços que cabem a cada um, o que é a demonstração da inegável cortesia de meu pai). E então começa, verdadeiramente, o repasto.
Quando o garfo penetra pela primeira vez na massa, descobre-se, em meio dum murmurar undoso, que a tortilha, apesar do seu aspecto levemente tostado, se mantém muito tenra no seu interior, como se durante anos, tivera sido conservada no fígado de uma ave fénix. Sobrenadando nessa maravilhosa gelatina, deslizam suavemente os pedacinhos de banana, como que empurrados por uma brisa sobrenatural. A massa da tortilha de bananas «à la havanaise» mostra, um pouco por toda a parte, pontos negros, que a fazem assemelhar-se vagamente ao púbis recém-depilado de uma estrela de cinema.
O acto de introduzir os pedaços de banana na boca acaba, pouco a pouco, por se aprender e dominar totalmente, e é das raras coisas de que, na meninice, não se pode ter ciência, pois só os homens, após haverem saboreado profundamente certas artes hindus, a dominam com segurança (talvez seja esta a razão que leva os Jesuítas a terem na mais alta estima a tortilha de bananas). A arte de comer a tortilha de bananas, em especial a tortilha de bananas «à la havanaise», é uma arte fundamentalmente viril. Quem sabe se não será por isso que as mulheres, de modo aparentemente inexplicável, apesar de se mostrarem capazes de apreciar o seu onírico sabor, engolem quase de um trago os pedaços que cortam em porções diminutas, ao passo que nós, os homens, os degustamos pouco a pouco, indecisos no engolir, no rematar uma operação tão delicada, tão subtil como o coito japonês ao som da música de Ravi Shankar! Em termos gerais, os uranistas e as afeiçoadas a Lesbos preferem a tortilha de batatas que confecciona um tal Jean, no Luxemburgo, diz-se que com coros gregos e modas Unissex. Mas deixando a um lado tais entes e voltando às delícias da tortilha de bananas «à la havanaise», permitam-me que lhes diga que o sabor e o aroma incríveis da banana se misturam com a massa de ovos ? massa quase sempre amorfa e insípida ? até alcançarem um ponto de perfeição tal que o pobre do mortal se julga em trânsito para o Nirvana. Esta fusão atinge alturas tão sublimes que chega a ser necessário lavar a boca com um vinho espumoso, bebendo-o apressadamente para anular o efeito cataléptico do seu índescritível «bouquet». Alguns apreciadores da tortilha de bananas «à la havanaise» que confecciona o meu excelso pai, afirmam que o deixar tempo de mais o sabor da tortilha na boca leva inexoravelmente aos sombrios caminhos da demência.
Terminado o repasto - o que acontece, frequentemente, cinco ou seis horas depois de ter sido iniciado, por causa da manifesta incapacidade masculina de ingerir rapidamente o celestial alimento, tempo que aproveitam as esposas dos nossos convidados para se aspergirem com águas-de-colónia, óleos e ceras revivificadoras da pele e da vitalidade (sabem que depois da tortilha de bananas o apetite carnal dos seus maridos será estrepitoso) -, os convidados, não sem, antes, testemunharem a meu pai todas as provas possíveis de amizade e de gratidão, e, até, o obsequiarem com presentes e peças de arte de incalculável valor, partem, rápido, para o aeroporto, e minutos volvidos vêem-se, no céu, as luzes dos seus aviões fretados aproando a Nairobi e Madrid, Telavive e Jacarta, Bucareste e Lima.
Meu pai e eu, do terraço, endereçamos-lhes acenos de feliz viagem com panos coloridos e, nos dias especialíssimos em que se consegue a Grande Tortilha de Bananas « À La Havanaise» com fogos-de-artifício das tonalidades do arco-íris, e assim, mesmo quando, já é noite, podemos ver os seus lencinhos bordados agitarem-se, por detrás das vigias, em adeuses para nós. Logo nos retiramos, e às vezes meu pai interroga-se sobre a minha capacidade de guardar o segredo da tortilha de bananas «à la havanaise». Em noites como essas, eu era até capaz de me envenenar.